É estranho — e profundamente incômodo — pensar que alguém já tenha acreditado, com convicção, que a “melhoria” de um povo passasse pelo apagamento de sua diversidade. Mas, sim, houve quem acreditasse nisso. E não foram poucos. A frase do título, grotesca e violenta, foi proferida por Renato Kehl, médico, farmacêutico e um dos principais nomes do movimento eugenista no Brasil, especialmente entre as décadas de 1910 e 1930. A eugenia, para quem talvez tenha esquecido desse termo empoeirado dos livros de história, era a crença de que a humanidade poderia — e deveria — ser “aperfeiçoada” por meio da seleção biológica de indivíduos. Um delírio pseudocientífico que ganhou força em várias partes do mundo. E, sim, também por aqui.
Mas como isso chegou ao Brasil? E por que ganhou tanta força? A resposta não é simples, nem se resolve com um parágrafo só. Ela exige voltas, perguntas incômodas e um pouco de coragem para encarar o que muitos ainda preferem esconder sob o tapete.
Um país mestiço tentando se tornar europeu
O Brasil do início do século XX vivia uma contradição imensa: enquanto se orgulhava da sua “miscigenação”, como prova de sua singularidade e riqueza cultural, ao mesmo tempo via nessa mistura a raiz dos seus “problemas sociais”. É uma dessas incoerências que parecem absurdas vistas de hoje — mas que, à época, ganhavam ares de verdade científica. Inspirados por teorias vindas da Europa e dos Estados Unidos, muitos intelectuais brasileiros acreditavam que o desenvolvimento do país dependia do “branqueamento” da população. Literalmente.
E aí entra Kehl. Ele não só propagava essas ideias como defendia políticas públicas baseadas nelas: esterilização de pessoas consideradas “degeneradas”, incentivo à imigração europeia (branca, claro), campanhas de higiene racial e exclusão social de negros, indígenas e pessoas pobres. Tudo isso com uma linguagem de “progresso”, “ordem” e “melhoria da raça”. Terrível, não?
Eugenia e saúde pública: o disfarce da violência
O mais perturbador, talvez, seja o fato de que a eugenia não se manifestava apenas em discursos inflamados ou artigos acadêmicos. Ela penetrava o cotidiano. Entrava pelos corredores das escolas, nos programas de saúde pública, nos critérios de acesso ao trabalho. A higiene era um dos principais veículos dessas ideias — e não por acaso. Os eugenistas associavam pobreza, doença e “degeneração” a características raciais. Assim, quem não se encaixava no ideal “branco, limpo, produtivo” era alvo de políticas de exclusão.
É aqui que a fala de Kehl se torna ainda mais simbólica: o sabão de coco “ariano” não é apenas uma metáfora infeliz. Ele representa a tentativa real de “lavar” o país de suas raízes afro-indígenas. E isso não se fazia só com sabão, claro, mas com leis, com exclusão e, sobretudo, com silêncio.
E o que ficou disso tudo?
Se a eugenia foi desacreditada como ciência após os horrores do nazismo, suas marcas sociais e simbólicas seguem vivíssimas entre nós. O racismo estrutural, a lógica de exclusão, a preferência estética por corpos e rostos brancos — tudo isso tem raízes profundas naquele pensamento eugenista.
Muitas vezes, quando falamos em racismo no Brasil, ouvimos o velho discurso: “Mas aqui não é como nos EUA”, como se o nosso racismo fosse mais brando, mais disfarçado. Talvez ele só seja mais envergonhado — o que, convenhamos, não o torna menos cruel. As ideias eugenistas que circularam por aqui alimentaram esse racismo envergonhado, que se esconde sob a capa do mérito, da educação, da boa aparência.
Uma memória que precisamos encarar
A fala de Kehl, tão repulsiva, nos provoca não só pelo que ela diz, mas pelo que revela de nós. Ela escancara um projeto de nação que não se fez apenas com aço e concreto, mas também com exclusão e apagamento. E o pior: esse projeto ainda ecoa, mesmo que em outras roupagens.
Portanto, não se trata de apenas lembrar uma frase ou um nome do passado. Trata-se de entender como essas ideias moldaram o presente. O que somos hoje — e o que ainda precisamos mudar. Porque se há algo que precisa ser “lavado” no Brasil, não é a pele do povo. É a memória seletiva que insiste em apagar o que nos fez adoecer como sociedade.
Referências Bibliográficas (ABNT)
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010.
KEHL, Renato. Eugenia e medicina social. São Paulo: Typ. Graphica Brasil, 1929.
Questões
1. O que a frase de Renato Kehl evidencia sobre o pensamento eugenista no Brasil?
A) A valorização da diversidade cultural brasileira
B) A crença na inferioridade de raças não brancas
C) A defesa da inclusão racial no projeto de nação
D) A oposição ao racismo estrutural
2. Qual foi um dos principais instrumentos usados pelos eugenistas para disseminar suas ideias?
A) Programas de diversidade nas escolas
B) Incentivo à literatura indígena
C) Campanhas de higiene e saúde pública
D) Criação de cotas raciais
3. Por que o pensamento eugenista teve tanta aceitação no Brasil do início do século XX?
A) Por ser compatível com a herança indígena
B) Por defender os direitos humanos
C) Por estar alinhado ao ideal de progresso e modernidade da época
D) Por combater o preconceito racial
4. Que marca social deixada pela eugenia ainda pode ser percebida hoje no Brasil?
A) Valorização das tradições africanas
B) Fortalecimento das políticas antirracistas
C) Existência de racismo estrutural
D) Igualdade plena entre os povos
5. O que a metáfora do “sabão de coco ariano” revela sobre a lógica eugenista?
A) A importância da higiene no Brasil colonial
B) A tentativa de “purificação” racial pela eliminação da diversidade
C) A preocupação com doenças tropicais
D) O incentivo à industrialização do sabão
6. Após a Segunda Guerra Mundial, a eugenia:
A) Foi reforçada como ciência nos países ocidentais
B) Perdeu força como teoria científica devido ao nazismo
C) Foi esquecida completamente nas Américas
D) Tornou-se base para os direitos civis
7. Renato Kehl defendia, entre outras políticas:
A) A miscigenação racial
B) A democratização da saúde pública
C) A esterilização de pessoas consideradas “degeneradas”
D) A proteção dos povos originários
8. A relação entre eugenia e saúde pública no Brasil baseava-se:
A) Na promoção da igualdade racial
B) No tratamento humanizado das doenças
C) Na exclusão de indivíduos considerados “impróprios”
D) Na valorização da medicina indígena
9. O pensamento eugenista no Brasil via a miscigenação como:
A) Um problema a ser corrigido
B) Um traço positivo da identidade nacional
C) Uma prova de avanço cultural
D) Um fator irrelevante para a ciência
10. O apagamento das raízes afro-indígenas no Brasil foi sustentado por:
A) Projetos de valorização da cultura negra
B) Leis antirracistas
C) Políticas de exclusão e discursos pseudocientíficos
D) Movimentos sociais de base comunitária
Gabarito comentado
- B – A fala de Kehl revela a crença de que raças não brancas eram inferiores.
- C – A eugenia foi difundida especialmente por campanhas de higiene e saúde.
- C – A eugenia era vista como parte do progresso e modernidade da época.
- C – O racismo estrutural é uma herança direta da lógica eugenista.
- B – A metáfora indica a tentativa de “purificação” racial.
- B – Após a Segunda Guerra, a eugenia perdeu credibilidade por sua associação ao nazismo.
- C – Kehl defendia práticas como a esterilização de indivíduos.
- C – A saúde pública foi usada como meio de exclusão social e racial.
- A – Os eugenistas viam a miscigenação como algo negativo.
- C – O apagamento se deu por políticas públicas e discursos que negavam a diversidade.