Eugenismo: Quando a Ciência Caminha Lado a Lado com o Preconceito
Falar sobre eugenismo é como abrir uma janela para um capítulo sombrio da história das ideias humanas. À primeira vista, parece até algo “científico”, com cara de laboratório, jaleco branco e gráficos. Mas, quando a gente olha mais de perto, percebe que essa tal “ciência do melhoramento humano” esteve — e em muitos casos, ainda está — bem mais próxima do preconceito do que da ética.
Afinal, o que é eugenismo? De onde veio? E por que, mesmo hoje, ele ainda importa?
O que é eugenismo, afinal?
A palavra vem do grego eu (bom) + génesis (origem), ou seja, “boa origem”. A ideia, em termos simples, é de melhorar geneticamente a espécie humana. Bonito na teoria, assustador na prática. Porque, acredite, melhorar “o ser humano” quase sempre significou eliminar o que não era branco, europeu, saudável, rico, hétero e cisgênero.
Foi no final do século XIX e início do XX que a eugenia ganhou força, especialmente em países como Reino Unido, Estados Unidos e Alemanha. Ela se apresentava como algo científico, moderno, quase salvador da humanidade. Mas, no fundo, era uma tentativa de classificar seres humanos em superiores e inferiores — com consequências brutais.
Um passado não tão distante
Nos EUA, por exemplo, a eugenia levou à esterilização forçada de milhares de pessoas consideradas “inaptas” para a reprodução. Pessoas negras, pobres, com deficiência, com problemas mentais — todas foram alvo desse pensamento cruel. Na Alemanha nazista, o eugenismo se transformou numa máquina de genocídio: o Holocausto foi o ápice de um projeto eugenista levado ao extremo.
Mas não precisamos ir tão longe. Aqui no Brasil, o eugenismo também encontrou solo fértil. A elite brasileira, em grande parte influenciada pelas ideias europeias, começou a defender o “branqueamento” da população. Sim, você leu certo. A miscigenação era vista por alguns como um “mal necessário” até que o país se tornasse mais europeu. Tudo isso travestido de ciência.
A máscara da ciência
É aqui que as coisas ficam perigosas. Quando o preconceito veste jaleco, a sociedade tende a baixar a guarda. A eugenia se apresentava como racional, lógica, técnica. Mas, na prática, era profundamente excludente. Quem definia o que era "melhor" ou "superior"? Quem decidia o que devia ser preservado e o que devia desaparecer?
O problema é que essas decisões nunca foram neutras. Sempre refletiram os interesses das elites, dos que já tinham poder. E, claro, os mais pobres, os negros, os indígenas, os imigrantes marginalizados, as pessoas com deficiência… esses eram os que estavam sempre na mira do “aperfeiçoamento”.
E hoje? Ainda existe eugenismo?
Essa é uma pergunta importante. O eugenismo “clássico”, com discursos abertos sobre esterilização ou pureza racial, felizmente está desacreditado. Mas algumas de suas ideias continuam entre nós — muitas vezes disfarçadas.
Quando alguém defende que pessoas com deficiência não deveriam ter filhos. Quando se promove a “meritocracia” ignorando contextos históricos de exclusão. Quando se romantiza um padrão estético eurocêntrico como sinônimo de beleza. Ou quando se critica políticas afirmativas dizendo que "todos são iguais", sem levar em conta as desigualdades estruturais… há ali ecos de um pensamento eugenista.
Mais recentemente, o avanço das tecnologias genéticas — como a edição de genes e testes pré-natais — reacendeu debates éticos. Até onde podemos ir no controle genético sem cair novamente na lógica de exclusão?
Por que precisamos falar sobre isso
Porque o eugenismo é um daqueles fantasmas históricos que, se a gente não encarar de frente, continua assombrando. Ele mostra como a ciência pode ser usada como instrumento de opressão, e como é essencial que o conhecimento caminhe com a ética, o respeito e a empatia.
E também porque, ao entender o passado eugenista, conseguimos identificar melhor os preconceitos do presente — mesmo quando eles estão mascarados.
Falar de eugenismo é, no fundo, falar sobre humanidade. Sobre quem tem direito de existir plenamente. Sobre o valor da diversidade. E sobre a responsabilidade de construir um mundo mais justo, onde a ciência sirva à vida — e não ao controle de quem merece viver.
Monteiro Lobato. Um nome que, para muitos brasileiros, traz à tona memórias da infância: Narizinho, Pedrinho, Emília e o Sítio do Picapau Amarelo. As histórias que marcaram gerações foram criadas por esse autor que, sem dúvida, é um dos mais importantes da literatura nacional. Mas… e se eu te dissesse que esse mesmo Lobato também apoiava ideias eugenistas? Chocante? Incômodo? É sobre isso que precisamos conversar — com coragem e sinceridade.
Um homem de seu tempo — mas isso basta?
Antes de mais nada, é preciso dizer: Lobato nasceu em 1882 e morreu em 1948. Ou seja, viveu num Brasil que ainda engatinhava na construção de uma identidade nacional, recém-saído da escravidão e mergulhado em desigualdades brutais. Nessa época, ideias como a eugenia — que propunham o "aperfeiçoamento da raça humana" por meios científicos — ganhavam força em muitos países. E, sim, infelizmente, Monteiro Lobato acreditava nisso. Mas devemos parar por aí? Devemos resumir o autor a isso?
A eugenia no Brasil e o pensamento de Lobato
O movimento eugenista no Brasil ganhou força no início do século XX, influenciado pelas correntes europeias, especialmente do Reino Unido e da Alemanha. No nosso caso, a eugenia foi apropriada com um tempero local: desejava-se "branquear" a população por meio de políticas migratórias e campanhas de saúde pública.
Monteiro Lobato foi um dos que aderiram a essa visão. Em textos como O Presidente Negro (1926), uma ficção científica ambientada nos EUA do futuro, o autor faz críticas veladas (e às vezes explícitas) ao que ele via como "degeneração racial". Há trechos que hoje soam — com toda razão — profundamente racistas. E não, não dá pra fingir que é só “coisa do passado”. Não é.
O incômodo necessário
Pode ser duro olhar para um autor tão querido e enxergar falhas tão graves. Mas é necessário. Não se trata de "cancelar" Monteiro Lobato, como alguns apressadamente afirmam. Trata-se de reconhecer que a genialidade literária pode coexistir com ideias perigosas. E mais: de refletir sobre como essas ideias foram, por muito tempo, normalizadas na sociedade brasileira — inclusive na literatura infantil.
Quando uma criança lê Emília debochando de personagens negros ou vê Tia Nastácia retratada de forma estereotipada, ela absorve isso. E, por muito tempo, a crítica foi silenciada em nome da tradição. Mas hoje, temos ferramentas para ler com outros olhos.
Releitura crítica: um ato de amor
Revisitar Lobato criticamente não é destruir sua obra, mas redescobri-la. É possível, sim, ler o Sítio do Picapau Amarelo com atenção redobrada, discutindo o contexto, analisando as entrelinhas e, quem sabe, reimaginando essas histórias. Afinal, a literatura é viva. E a educação também.
Podemos usar os textos de Lobato para promover debates sobre racismo estrutural, sobre como as ideias eugenistas ainda ecoam nas estruturas sociais e como nossa infância foi (e ainda é) moldada por representações problemáticas. Isso é mais potente do que simplesmente apagar a obra.
Um legado contraditório
Monteiro Lobato foi um homem de ideias inquietas, empreendedor da cultura, defensor da industrialização brasileira, criador de personagens inesquecíveis. Mas também foi um homem que acreditou na eugenia, que perpetuou estereótipos racistas e que, mesmo sem intenção explícita, colaborou para a manutenção de um imaginário colonial.
Aceitar essa dualidade não é fácil, mas é um passo fundamental para uma sociedade mais honesta consigo mesma. A história não é feita apenas de heróis e vilões — ela é feita de seres humanos. E o mais humano que podemos fazer diante disso tudo… é pensar, questionar, debater.
Referências Bibliográficas (ABNT)
BLOCH, Peter. Eugenia no Brasil: a ciência a serviço do preconceito. São Paulo: Editora Contexto, 2002.
LOPES, José Sérgio Fonseca de Carvalho. Monteiro Lobato: entre o mito e a crítica. São Paulo: Moderna, 2010.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.
LIMA, Lilia Schwarcz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.